A MORTE DO FORASTEIRO
Há muitos e muitos anos, naquele tempo tão absurdamente distante no qual eu ainda era jovem, soube de um grupo de apreciadores de haikais. Além do apreço, os membros da estranha seita também ousavam hakaiar – para fazer jus à ousadia que embalou meu passado, proponho a verbalização deste neologismo que mais se assemelha a aboio nostálgico. Fiz contato com os fanáticos, ganhei lugar no bando.
Naqueles perdidos dias eu me achava no Rio de Janeiro. Era aluno defronte a Academia Brasileira de Letras, e por lá marcavam encontros tais sequazes do haikai. Saía das aulas de Química e ia me aventurar com a trupe. Observo que era uma época na qual as notícias não viajavam pelas redes sociais; a década de 1970 teimosamente nos impunha o ofício de descobridores do mundo.
A pouco e pouco, entrosei-me no mundo dos haikaístas. Em seguida, daria meu passo adiante: compus um haikai. A noite da ambientação serenava em junho, no final do outono, barrando o olhar da lua cheia que se atrevia, vez a vez, espiar de entre as nuvens. Eu andava lá pelas imediações dos Arcos da Lapa quando presenciei um assassinato: um vulto pulou do escuro, enorme, e um gari que fazia a coleta não titubeou: descalçou uma das luvas, armou-se com uma pedra e a arremessou contra o sapo. Pobre coitado! Não teve direito sequer a último coaxo.
Dia seguinte, eu assiduamente vespertino e encapotado, fui ao encontro exibir meu haikai. Circunspecto, desfilei o título: “A morte do forasteiro”, e emendei os versos: “Luar, a pedra voa. / Sapo longe da lagoa. / Lágrima? Garoa”. Houve quem muito o apreciasse, principalmente a recente namorada. Ouvi elogios: com o rigor de Massaud Moisés, em seu ‘Dicionário de Termos Literários’, alguém observou que a composição de três versos seguia a prescrição da forma, ou seja, a soma de dezessete sílabas poéticas, na alternância cinco-sete-cinco.
Ouvi também que eu alcançara uma pretendida “humanização da Natureza e a correspondente naturalização do ser”. Ainda ouviria que obtivera êxito na “depuração descritiva” e que atingira “os três movimentos da existência humana: ascensão-apogeu-decadência”. O salto, o céu/espaço, a morte/chão. Entretanto, sobrou ouvido para igualmente recolher a crítica do erro: o haikai em seu fôlego rítmico original não comporta a rima! E o debate se desenrolou em prós e contras até tudo terminar em sexta-feira e garrafas vazias...
Agora, com minha aventura hakaísta entretecida pelo esquecimento dos anos, eis que para salvar a memória recebo os versos de Robson José Côgo. O haikai-cirandeiro Roda do Destino: “Tudo está ligado / Com invisíveis fios / Na roda do destino”; o haikai-albergue Um Lugar: “Coração é um lugar / Onde o tempo vem regar / Com a água do saber”; o haikai-sabedoria Ser O Que Se É: “Ser o que se é / Nem sempre possível é / Mesmo querendo ser”; o haikai-impropriedade Os Donos: “Quanto mais velhos / Menos somos / De nós, os donos”.
Então? Para o rigor, está presente a concentração em reduzido espaço de “um pensamento poético e/ou filosófico”, a sensibilidade condensada, a concisão discursiva a enredar o fugaz com a eternidade, o instantâneo com a imortalidade. É leitura que pede silêncio, pois é no silêncio que se nos impõe a carga de sua percepção, de seu significado. Dito isso, sobra dizer que nosso grupo haikaiano-tropicalista temperava suas tertúlias com debates acalorados e ressacas azedas. Éramos assim, sem o rigor da forma, mais afeitos a rimar mundo com Raimundo, ao jeito durmmondiano, e a viver sem solução.
Neste reencontro com o haikai, ouso dizer além que José Lino Grünewald, em ‘As pedras de toque da poesia brasileira’, selecionou alguns de nossos mais preciosos e não esquematizados haikais, joias lapidadamente brutas e raras. Como: “Longo o ofício que destece / a malha dos milenganos / e dos olhos limpa a escama” (‘A experiência eterna e séria’, Geraldo H. Cavalcanti); ou: “Minha boca está no presente / O meu olhar, no passado, Meu ventre está no futuro” (‘Mulher em três tempos’, Murilo Mendes); ou: “perdido entre signos / decifro devoro / persigo persigno” (‘perdido entre signos’, Carlos Ávila); ou: “Ao poeta faz bem / Desexplicar – / Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes” (‘Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada’, Manoel de Barros).
A pedra de toque é essência da poesia – poderia eu, a meu garimpo, desexplicar. Mas de sua bateia categorizada, o ensaísta, o escritor e o crítico Alexei Bueno ensina a lição básica: a metáfora pedra de toque advém da “rocha escura do ourives, que, uma vez riscada, indica a qualidade do ouro”. Em sua seleção, com o refino lançado a amplo espectro, Grünewald encheu um baú do tesouro com a beleza essencial do texto brasileiro: da poesia clássica e da moderna, do cancioneiro da bossa e do sertão, da prosa também porque tem gente que faz poesia até quando elabora lista de compra. Como seu critério para a antologia não era a prescrição da forma, não poderia tangenciar frase de Nelson Rodrigues: “Lindo como um poente de folhinha”. Por isso, e com maestria, dependurou-a na parede de papel da antologia.
Ao fazermos haikais seremos sempre estrangeiros, forasteiros. Afinal, não vivemos a tradição da longeva forma poética da waka, que foi berço do haikai. Não somos japoneses, em definitivo! Mas a linguagem da sensibilidade é universal. Despida a obra de sua moldura, de seu enquadramento, sob e após a configuração há de restar o ornato conciso da emoção. Porque todo haikai cai em nossa percepção e nossa rede de significados como pérola semântica do mundo sensível.
Em relação ao haikai, transgredindo-o, é que matamos o necessário estrangeiro que há em nossas almas. Depois, desfigurados, nos consentimos o papel de carpideiras de ofício a prantear a nossa transfiguração. Para brincar com as palavras, com a emoção, com o verso isento da rigidez da métrica, mas exigente da desrazão. Como rima Robson Côgo: “Dentro de Deus / Muitos eus / O seu e o meu”. E me cabe, até eu que sou ateu – porque a nossa beleza e o que nos dá criatividade é a diversidade, a cada laico verso forasteiro que ousamos. A cada vez que imolamos a sombra da tradição a fim de iluminar o futuro. A cada vez que nos matamos em nome da ressurreição, do renascimento – em nome do novo, mesmo que seja sob nossa velha pele.
Somos o sumo do novo, a cada vez que transgredimos a forma para anunciar o ser em evolução, rimado e profetizado pelo haikai de Robson Côgo: “Cada emoção / Faz do coração / O ser em evolução”. Vida e ambientação, olhar e palavra, leitor e leitura – seu haikai é sábio jogo do Pleno Sentido, do vivido e do pressentido.
Adilson Vilaça
Jornalista e escritor